domingo, 22 de setembro de 2024

 

Feira do livro do Porto, quando ainda no pavilhão Rosa Mota


Trecho do conto Mestra e Sala

Lembrou-se da mania do pai de matar moscas na hora das refeições. Na época, ainda criança, assistia-o persegui-las com determinação, sempre que sobrevoavam a mesa. Sua mãe nunca se habituou à mania do marido, que, além dessa obsessão, tinha o hábito de guardar as moscas mortas numa caixa de sapatos. 

Suas práticas esquisitas iam além. Costumava juntar moscas vivas em recipientes de vidro para observá-las, enquanto fazia as refeições, momentos em que seu espírito incontrolável encontrava alguma paz. Em transe e fascinado, observava as moscas prisioneiras batendo no lado interno do recipiente, tentando, repetidamente, sair voando. 

A mãe de Suzana aprendeu a se conter. Retraindo-se, aceitava o vício do marido à base de muitos calmantes que se habituara a ingerir. Suzana desenvolveu asco do pai e pena da mãe, e ganhou o hábito de matar moscas como o pai e ingerir pílulas como a mãe. 

A história dos pais de Suzana foi manchete nos jornais. Sua mãe morreu em decorrência da falência do coração devido à mistura de medicamentos. A notoriedade da notícia não foi pela morte propriamente dita, mas pelo que se descobriu na visita do médico legista. Ao derrubar algumas das muitas caixas de sapatos empilhadas ao redor da cama, viu a estranha coleção de milhares de moscas guardadas no quarto do casal. Foi essa história bizarra que circulou nos principais jornais e chocou a população carioca. O resultado de tanta polêmica fora a internação do pai de Suzana num hospital psiquiátrico do município, onde se encontra até hoje. Ficou conhecido como O Colecionador. 





 Cabeça e Chão na UNICEPE

Convite elaborado pela designer gráfico, Iandara Nery de Lanteuil

Foi um privilégio poder contar com o estímulo e apoio logístico do amigo Rui Vaz e equipe, para lançar Cabeça e Chão na tradicional livraria UNICEPE da cidade do Porto, Portugal, dia 3 de março de 2016, ao lado dos amigos Rui Spranger e Eduardo Leal que leram trechos de alguns dos meus contos. Também sou muito grato aos queridos amigos e amigas que lá se fizeram presentes, tornando essa experiência ainda mais valiosa e inesquecível. 

Trecho do conto Merda

... mas Adelaide queria mesmo era trabalhar para ganhar seu próprio sustento. Só que não é nada fácil conseguir o primeiro emprego quando se é jovem, sem qualificação, experiência e padrinho para dar um empurrão. Assim, agarrou o trabalho que a oportunidade lhe ofereceu. 

 – Sabe cozinhar? 

– Feijão, arroz, suflê de cenoura. Empadinha de queijo. Empadão de camarão. Galinha ao molho pardo, tutu à mineira. Rabada, cozido. É só pedir que eu faço. 

– Prendada, a moça. 

– Sei me virar. 

– Aprendeu com quem? 

– Vendo e ajudando mamãe, titia, vovó... 

– Documentos? – Fui roubada logo que cheguei. Estou providenciando a segunda via.

 – Vai começar como assistente. Lavando panelas e pratos, cortando legumes, descascando batatas. O salário é o mínimo, mais a divisão da caixinha. A clientela é fiel e sempre deixa uma boa gorjeta.

 – Aceito. 

 Começou num botequim em Copacabana. Chegava às oito e, na maioria das vezes, ajudava o patrão a fechar o bar, nunca antes da meia-noite. Acabou metendo a mão no fogão. Agradou a freguesia. O cozinheiro, um nordestino de pouca conversa, é que não gostou do sucesso que ela fez. Perdeu a importância e deixou o recalque transparecer. Trabalhavam num espaço em que mal cabiam. Volta e meia, viam-se rosto a rosto. Esbarravam-se com frequência numa rotina que ajudou a diluir a raiva que o cozinheiro inicialmente nutria por ela. Aquele “esbarra-esbarra” criou uma intimidade prazerosa e eles gostaram disso.

Elevador

 

Convite elaborado pela designer gráfico, Iandara Nery de Lanteuil

Trecho do conto Elevador, do meu livro Cabeça e Chão 

A porta se abriu. Um barulho seco acompanhou o movimento. No fundo, bem distante, ela avistou um garoto suado, vestindo camiseta regata e calção bem maior que o seu tamanho. Nas mãos, uma bola de futebol bem gasta. Seu rosto sujo tinha pressa. Na entrada, a senhora titubeou. Ficou ali parada olhando para o garoto, olhando para a enorme distância que os separava. 

 “Não sei se vou conseguir”, pensou. 

 – Vai ficar aí, dona? – perguntou o menino. 

 Ela não respondeu de imediato. Precisava de um tempo. 

Um tempo que o menino não queria ceder...